1 de agosto de 2016

Amesterdão e eu

De regresso a casa e a fazer um balanço do que foram estas férias para mim. Decidi não escrever tudo no mesmo post porque há muita coisa para dizer que não pode ser deixada de fora, houve muita coisa sentida que deve ser documentada para que eu possa ler vezes e vezes sem conta e não esquecer tudo o que estas férias me trouxeram.
Amesterdão é diferente de tudo o que conheço, diferente do Porto onde cresci, diferente de Paris onde vivo, diferente de tantas outras cidades que conheci e amei, cada uma à sua maneira. Amesterdão "confundiu-me" a princípio, talvez seja a sua energia "abafada" e "contida", talvez seja por estar abaixo do nível do mar, o certo é que nunca havia sentido nada parecido ao que lá senti. Tudo é bonito em Amesterdão mas não é o mesmo bonito de Paris, Paris eu diria "bonito realeza" e Amesterdão "self-made bonito", pequeno, acolhedor, prático, útil, são todas palavras que me surgem ao pensar na cidade dos canais. As casas de tijolo inclinadas com as suas portas pintadas e os sinais de proibição de estacionamento de bicicletas. As pequenas lojas que vão surgindo e nos revelam o empreendedorismo que vive no sangue dos Holandeses, a decoração "clean" e próxima da natureza que tanto me atraíram e que contrastam tanto com a beleza perfeccionista das montras de Paris. As lojas de Amesterdão respiram cores pastel e artesanato urbano, uma delícia.

Se observarmos com o coração aberto podemos sentir a poesia que emana dos canais, das bicicletas presas nas pontes, dos cestos que as enfeitam com flores artificiais, das campainhas que ouvimos como ruído de fundo ao longo do dia. Essa poesia que nos faz sonhar com tempos antigos de um povo que conquistou terra ao mar e que sozinho se fez e se vai fazendo, marinheiros, povo do mar, como nós, Portugueses. O engenho que pude testemunhar no seu sistema de diques e canais e a simplicidade do mesmo, conquistou-me e se dúvidas existissem, a simpatia com que fui agraciada em vários momentos deu-me uma Amesterdanite (paixão aguda por Amesterdão e as suas gentes). E então no final das minhas férias assumo que sofro desse mal e que o meu coração pertence a mais um pedaço de mundo.

Amesterdão parece-me seguir as pisadas dos seus antepassados marinheiros sendo um porto de chegada para pessoas de todas as cores, interiores e exteriores. A zona antiga da cidade continua a ser a taberna dos marinheiros que chegam e procuram o esquecimento, qualquer tipo de esquecimento e entorpecimento, do mar, dos mares, dos capitães, deles mesmos.

Há tanto que poderia dizer e ainda assim tanto ficaria em falta. Amesterdão faz-nos acreditar que somos capazes, que os sonhos são alcançáveis, que a Arte é um modo de vida, que a vida é feita para viver e que se for preciso conquistamos terra ao mar.

21 de junho de 2016

Meu Porto, Meu Portugal

Este fim-de-semana fui ver o jogo de Portugal ao estádio. Não foi a minha primeira vez num estádio mas foi a minha primeira vez com a selecção. Quando vivia no Porto entre os 18 e os 20 talvez, tive uma fase de adepta ferrenha do FCP ou fêquêpê com a pronúncia da minha terra. Quando me mudei para o Algarve com 21, continuei a ser adepta ferrenha mas mais pela minha terra do que pelo clube em si. Sempre senti o Porto de uma forma intensa, cheio de arestas e asperezas, com uma energia de luta a roçar a agressão mas sem lá chegar verdadeiramente. O Porto bebe-se assim nas suas ruas de paralelos, nas roupas a secar nas varandas, nas janelas e nos estendais que alguns bairros ainda conservam. O Porto é barulho de panelas na noite de Ano Novo, o Porto é comida, união, resposta na ponta da língua, ajuda desinteressada ao estranho que se perde nas ruas da cidade. O Porto é abrir as portas a quem connosco quiser comer sentado à nossa mesa e partilhar das nossas histórias regadas a palavrões e situações engraçadas. Nós do Porto temos um sentido de humor bem afiado, quando é preciso espeta no sítio certo, quando é preciso acalma ânimos e dá lições. O meu Porto é assim. Pulsante, cheio de energia, não é calmo e mesmo quando parece basta observarmos os velhos sentados nos bancos de jardim e perceber a vida que pulsa no bater das cartas, no silêncio das suas jogadas, nos seus pensamentos que se elevam sob as árvores centenárias que protegem e acolhem esta energia tantas vezes incompreendida. O nosso sotaque é tão somente um reflexo dessa energia e um exemplo dessa incompreensão, somos gozados e conotados de parolos e tripeiros e muitos de nós têm vergonha desta pronúncia do norte quando o que deveríamos sentir era orgulho, um orgulho imenso e desmedido por se sentir na voz tudo aquilo que a nossa terra encerra, guarda e aguarda. A pulsão mágica do norte, do Douro que serpenteia por entre as encostas que aprendemos a respeitar e desse respeito nasceram as vinhas e os seus vinhos. A pulsão mágica do desembocar do Douro no Atlântico e onde o nosso sotaque grita de alegria e extâse numa dança sibilante entre ninfas e sereias. Esse mar que abraça as nossas águas doces e as salga com a sabedoria que só o mar tem, nesse desembocadouro podem-se ouvir histórias antigas, tão antigas que a memória não as consegue alcançar e então elas perderam-se da memória dos homens, mas, o mar e o rio guardaram-nas e elas estão lá para quem as quiser ouvir, basta querer, basta aceitar aquela força que nos parte em dois se não formos humildes e nos eleva nos ares se a aceitarmos tal como ela é, tal como nós somos. O Porto é assim, dá-te a mão e leva-te aos céus se não tiveres medo das tuas cores, abraça-te na sua rudeza e dá-te um colo tão forte quanto o granito do seu chão. O amor do meu Porto é assim, as gentes do meu Porto são assim, mãos calejadas, coração calejado, sulcos no rosto, aventais na cintura, viúvas trajadas a preto, capas negras estudantes, homens de chapéu, velhos nos bancos de jardim, iscas e azeitonas, copos de vinho, pregões que acabam em "ão" e vida, muita vida, vida vivida de dores e gargalhadas, altas, tão altas, gargalhadas e dor misturadas num coração que se abre mais e mais e gosta de gente como a gente, gente que chora, come e ri com a gente, nós somos assim, nós os do Porto, os do Norte e percebi que quando era do Porto clube, não era realmente do clube, tal como não sou da selecção, Eu sou do Porto, de Portugal. É isso que me faz vibrar, foi isso que me fez chorar enquanto cantava o hino, sou de Portugal e sinto a falta de nós, sinto a falta do Povo que senti nos versos daquele hino que agora só usamos para o futebol, sinto a falta do Povo que se cumpre nessa terra que eu tanto amo e da qual faz parte a minha cidade, o meu Porto, o meu coração. Portugal, se eu apenas vos pudesse fazer sentir o que eu senti com aquele hino, se vocês apenas soubessem do que são feitos, todos vocês, portugueses do meu Portugal.


15 de junho de 2016

"Maricas", "pretos" e "loiras"

Os últimos tempos têm sido ricos em notícias que nos mostram o efeito que o ódio tem no coração da humanidade, no coração dos homens e das mulheres. Acho que posso dizer aquilo que sempre digo, não consigo perceber porque é que a diferença assusta tanto, não consigo perceber porque é que esse medo é tanto que se transforma em ódio e faz com que se digam e façam coisas terríveis, abomináveis, desprezíveis, coisas que vão contra a essência da vida que é a própria vida e o amor.

Racismo, xenofobia, misoginia, complicadas estas palavras? Assustadoras? Dentro de nós algo salta logo e diz, "não, nem pensar, eu não sou nada disso." Certo, nós não somos as pessoas que pegamos numa arma, entramos numa discoteca e matamos 50 pessoas, talvez até não sejamos o tipo de pessoa que por trás de um écran de computador escrevemos comentários carregados de ódio e que levam alguém a ter vontade de morrer, acabar com a sua própria vida, o ódio de que são alvo é de tal forma grande que elas se afogam nele e desistem de viver. Então talvez não sejamos esse tipo de pessoa. Ainda bem por isso.

Que tipo de pessoas somos então? Nós somos todos os outros, nós somos aqueles que ouvem a palavra paneleiro e rimos ou ficamos calados, somos aqueles que ouvimos as piadas sobre as loiras e até as contamos a outras pessoas, nós somos aqueles que que calamos quando ouvimos alguém dizer que os pretos são burros ou até dizemos que trabalhamos como um preto. Nós somos todos os outros que fazemos piadas sobre as mulheres ao volante, dizemos que se é brasileira é puta, que se é romeno é ladrão e se é cigano é porco e mau. Nós somos os que perpetuam a mentalidade que alimenta o ódio daqueles que matam os 50, dos que explodem Bataclans, nós somos os outros, os que fazem piadas e permitimos que os nossos filhos escutem e achem isso tudo normal. Mas não é normal e não é por ser uma piada ou por serem só palavras que são inofensivas. Nós somos responsáveis pelos adultos do futuro, pelo ódio e pelo amor que vai brotar nesse futuro porque as sementes desse futuro são os nossos filhos, as nossas crianças, os nossos sobrinhos e os nossos netos e quando nós, os seus modelos, dizemos que alguém comete um erro porque é preto e então é burro eles vão acreditar em nós porque nós somos os seus modelos. Quando nós dizemos que as mulheres são histéricas as nossas filhas crescem a acreditar que são histéricas e os nossos filhos aprendem que devem tratar as mulheres como histéricas. Quando nós dizemos que as pessoas do bairro roubam, os nossos filhos vão acreditar nisso e vão crescer fechados a novos mundos, a novas pessoas e vão repetir o padrão e vai ser isso que vão ensinar aos seus filhos também. E se calhar quem sabe, o teu filho ou a tua filha cresça e se torne na próxima pessoa a maltratar alguém, seja na escola, seja na rua, seja em casa, apenas porque tu és mulher ou és um homem com alguma diferença, talvez até ele ou ela tenham um irmão que goste de meninos ou uma irmã que goste de meninas e o que é que ele/a vai fazer depois? Vai continuar a contar as piadas que te ouviu contar sobre paneleiros e maricas?

A mudança vem das coisas que chamamos de pequenas, a mudança vem de nós e das nossas crianças, o futuro está nas nossas mãos e nós somos responsáveis por ele, somos acima de tudo responsáveis por crianças que olham para nós como heróis e acreditam que tudo o que dizemos e fazemos é como deve ser feito e dito, portanto, da próxima vez que pensares em dizer maricas, não digas, da próxima vez que ouvires alguém dizer isso, não permitas, não te cales, sê o exemplo do futuro que queres para o teu filho, porque o teu filho e a tua filha são diferentes e únicos e especiais, e amanhã a diferença deles pode ser o alvo, talvez tenham sardas, talvez sejam baixinhos, talvez sejam gordos, talvez sejam magros, vai haver sempre alguma coisa e cabe-te a ti dizer-lhes que maricas é homofobia, preto burro é racismo, portugueses são pedreiros é xenofobia entre muitas outras coisas. Cabe-te a ti ensinar-lhe a defender aqueles que não se podem defender e a não compactuar com o rufia da sala, cabe-te a ti ensiná-los a defenderem-se, só a ti.



5 de junho de 2016

Esse bicho chamado amor-próprio

Acredito que não exista uma mulher que a dada altura da sua vida não tenha ouvido falar, a respeito de alguém ou dela mesma, de amor-próprio. Acredito que todas devam ficar como eu própria fiquei, com a ideia de que esse tal de amor-próprio não é nada mais do que o Santo Graal do qual toda a gente fala mas poucos ou nenhuns sabem dizer realmente onde ele se encontra.

Tenho andado eu mesma nessa tal de busca pelo Santo Graal. Ainda não o encontrei, não completamente, e esta terá sido talvez, uma das grandes lições que tive nesta trabalhosa demanda, sabem, é que eu pensei que era algo que se encontrava num momento e por inteiro, quase como um passe de mágica ou como uma chave que perdemos e um dia ei-la e a gaveta que não se abria pode por fim, ser aberta. Felizmente não é assim que acontece, onde estaria a piada se assim fosse? O amor-próprio conquista-se como ao animal assustado que salvamos das ruas, aos poucos com muito carinho e paciência, por nós mesmas acima de tudo. Pode ser frustrante e na maior parte das vezes a única coisa que dá vontade é de desistir e mandar tudo para o alto, afinal como é que se conquista um conceito? Como se ganha algo que não tem forma e que acima de tudo só conhecemos na teoria e de ouvirmos outros falarem, sobretudo quando nem esses outros nos podem dizer muito sobre essa coisa que não se consegue sentir com as mãos?

Bem, da pouca experiência que tenho posso assegurar-vos de que vale todo o trabalho mesmo que até aqui eu tenha conquistado 1% do todo que há para alcançar. A questão é que esse 1% já faz toda a diferença em mim e a diferença que há em mim reflecte-se no que me rodeia e isso, não tem preço.

Não existe propriamente uma fórmula para chegar a ele, às vezes é algo tão simples como dizer o primeiro não ou um olhar no espelho e de repente sentir uma pontinha de amor pelo reflexo. Não o poderei dizer porque não é igual para todos e porque sem o esforço da descoberta a conquista não é válida, não solidifica. E o que é para mim o amor-próprio?

O amor-próprio é o que guia a mão na busca dos sonhos que o nosso coração acalenta. O amor-próprio é o NÃO que nos desvia dos que nos tentam manipular. O amor-próprio é o afago que sentimos quando a vida nos apresenta os seus desafios. O amor-próprio protege-nos e liberta-nos. É o amor-próprio que guiará os nossos filhos com toda a segurança neste mundo quando não estivermos por perto. É uma oração de amor a nós mesmas:


Amor-próprio que estás em mim, 
Guia-me pelas estradas da vida 
Assim como me guias pelas estradas de mim mesma, 
Perdoa-me quando te ignoro assim como eu me perdoo quando o faço, 
Amor-próprio que estás em mim, 
Que eu seja capaz de te sentir nas horas mais escuras e partilhar nas horas mais claras. 

Com amor, nesta hora clara, partilho convosco.
SG

31 de maio de 2016

Onde te dói?

Todos nós em algum momento das nossas vidas passamos por uma situação que nos causou dor, pode ter sido muita ou pouca mas foi dor. E o que nos ensinam ao crescermos é que a dor deve ser evitada, começa pela física quando somos pequenos e logo, logo, escala para a emocional. Ao mesmo tempo também nos é ensinado a não chorar, a não mostrar o que sentimos, a não dizer o que pensamos e a dada altura não vivemos mais, somos máquinas formatadas que perderam a sua ligação com o instinto mais básico e mais salutar que o ser humano poderia ter. As emoções são a forma do nosso corpo regular a nossa saúde física e psicológica. As emoções são mensagens que temos ao nosso dispor para seguirmos os nossos caminhos acompanhados de um farol pessoal. As emoções são saudáveis e devem ser vividas.

Mas, não é isso que nos ensinam ao crescermos, seja de forma directa ou indirecta, por palavra ou por exemplo, e assim aprendemos a temer e a fugir daquilo que existe para nos proteger e guiar. Aprendemos a ignorar a "sensação na barriga", a raiva, a tristeza, até mesmo a alegria. Todas as emoções seriam sinal de fraqueza ou descontrolo. Mas porquê? Não é quando o bebé chora que percebemos que algo se passa? Não é a única forma de comunicação que ele tem, as emoções? O que muda quando crescemos? Porque é que não podemos também comunicar com as nossas emoções e vivê-las? Sentimos frio, calor, fome, mas também medo, dor, angústia, alegria, tristeza e muitas outras, porque não expressá-las?

Se nos explicassem para o que realmente serve a dor talvez o mundo fosse um pouco melhor. Se nos mostrassem que não é preciso temê-la ou escondê-la talvez fossemos seres humanos mais felizes, mais capazes, mais humanos. Às vezes basta dizer onde nos dói para a dor passar. E se ao longo do caminho fomos domesticados estamos sempre a tempo de resgatar esses instintos em nós, com calma, carinho e paciência, como um animal selvagem posto em cativeiro e que finalmente é devolvido ao seu habitat natural. 

Tudo é possível. Basta dizer onde dói.




27 de maio de 2016

O Poder da Integridade


No silêncio tenho vindo a pensar na integridade e no que ela significa. Dei-me conta de que não sei definir integridade e por isso decidi procurar o seu significado no dicionário:

Íntegro:

1. Inteiro, completo.
2. Que tem comportamento exemplar. = Honrado, recto

Integridade:

1. Qualidade de íntegro.
2. Carácter daquilo a que não falta nenhuma das suas partes.
3. Estado de são. de inalterável.
4.[figurado] Rectidão, honradez; pureza intacta.

Curiosamente, uma das definições vai de encontro àquilo em que eu tenho reflectido, inteiro, completo, carácter daquilo a que não falta nenhuma das suas partes.

Acho maravilhoso como uma simples palavra pode abarcar em si tanto conhecimento, tanta sabedoria, às vezes basta ir ao dicionário e ver o que ela significa. Neste caso em particular eu confirmei as minhas reflexões, como é que algo que está partido e dividido pode ser íntegro? Como é que se pode presumir a integridade física, mental, emocional e espiritual se as partes não estiverem onde se encontra o seu Todo? Como querer viajar por outras paragens se uma parte se encontra noutro tempo, noutro sítio, noutra parada? Como se defendem conceitos que existem dependentes de integridade se ela não existe em nós? E como é que essa mesma integridade se manifesta nas mais diversas esferas do nosso Ser?
ín·te·gro

"íntegro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/%C3%ADntegro [consultado em 17-05-2016].
in·te·gri·da·de
(latim integritas, -atis)

substantivo feminino
1. Qualidade de íntegro.

2. Carácter daquilo a que não falta nenhuma das suas partes.

3. Estado de são, de inalterável.

4. [Figurado]  Rectidão, honradez; pureza intacta.

"integridade", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/integridade [consultado em 17-05-2016].
in·te·gri·da·de
(latim integritas, -atis)

substantivo feminino
1. Qualidade de íntegro.

2. Carácter daquilo a que não falta nenhuma das suas partes.

3. Estado de são, de inalterável.

4. [Figurado]  Rectidão, honradez; pureza intacta.

"integridade", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/integridade [consultado em 17-05-2016].

20 de maio de 2016

O silêncio das coisas partidas

Tinha cá por casa algumas coisas que precisavam ser reparadas, pequenas coisas, nada de mais. Apesar de me parecerem coisas sem grande importância não conseguia deixar de me sentir incomodada. A asa de uma chávena que adoro. O puxador da porta. Um íman de frigorífico que caiu e se partiu em dois. Os dias transformaram-se em semanas, as semanas em meses e eu sem os consertar, sem os colar e eles ali, todos os dias a incomodarem-me com o silêncio das coisas partidas. 

Muitas vezes tive tempo e oportunidade para me dedicar a estes objectos mas a minha atenção fugia sempre para outra coisa que talvez nem estivesse partida, apenas outra coisa.

Há duas semanas cheguei ao meu limite e antes sequer de entrar verdadeiramente em casa peguei na chave de fendas e arranjei o puxador que todos os dias se soltava da porta. Respirei. De dentro de mim surgiu um pequeno e estranho prazer que não consigo bem definir e a partir desse dia comecei a pensar nas outras coisas que ainda tinha para consertar. Nesse momento deu-se um fenómeno estranho mas que bate certo com a pessoa que sou, continuei a adiar o conserto dos ditos objectos mas não como antes, não para evitar qualquer coisa que eu nem sabia bem o que era, agora adiava para prolongar o prazer do momento da reparação. Certo. Sou assim, complexa.

Ontem porém, estava sentada no sofá a vegetar no meio dos meus pensamentos e levantei-me com um salto, peguei no íman, colei-o, peguei na chávena, colei-a e outra vez aquele pequeno e indizível prazer. Fechei os olhos e aproveitei o meu momento de glória. E que momento de glória.

Podia agora explicar-vos o paralelo que fiz enquanto estava com os olhos fechados e em silêncio. Podia agora falar das pequenas coisas partidas em nós, à nossa volta e cá dentro. Podia falar de como essas pequenas coisas se tornam por vezes grandes e de como as grandes se tornam pequenas. Podia dizer que pequeno não significa insignificante ou sem importância. Podia, podia, mas não vou fazê-lo. Vou deixar-vos apenas com o silêncio das coisas partidas. Quem sabe o que poderão fazer com ele.




16 de maio de 2016

Conversas de vácuo

Hoje apetece-me falar de pessoas especiais. Talvez porque não fale delas as vezes suficientes, talvez porque as ache raras, talvez porque não lhes dê o valor que elas merecem. Hoje apetece-me falar de pessoas que enriquecem a minha vida e que acrescentam valor ao meu. Não, não me preenchem, acrescentam-me. 

Hoje quero falar daquelas conversas que nos abrem as portas da compreensão, quase como se entrássemos num vácuo onde tudo fica claro e num só instante podemos ver o Presente, o Passado e o Futuro, tudo num só instante. Hoje só quero dizer que sou grata por conversas de vácuo.

Hoje quero falar da simplicidade das mensagens e dos mensageiros e do mundo que esses mensageiros trazem nos olhos, basta olharmos com atenção, basta demorar mais de cinco minutos.

Hoje quero falar daqueles que vivem de acordo com o que falam. Geralmente não falam, vivem. Geralmente não procuram, vivem. 

Hoje quero falar daqueles que têm a magia de nos prender ao chão com o seu Amor e a sua Sabedoria. 

Hoje quero falar daqueles que exercitam a paciência e se aceitam como humanos. Que nos aceitam como humanos. Que não pedem mais do que isso. 

Hoje só quero dizer que sou grata.

Infinitamente grata.

A vida é realmente mágica.

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13 de maio de 2016

Não, não é amor!

Ando há uns dias com este título na cabeça, viro, reviro, hesito, não me apetece falar. Mas a frase não me sai da cabeça e volta vezes e vezes sem conta, não, não é amor.
Quando eu era adolescente recordo que o meu conceito de amor era bem quadrado e o mais engraçado é que esse conceito da adolescência não era o mesmo que eu tinha em criança, estranho não é? Mas não tanto se nos debruçarmos melhor sobre o assunto com olhos de ver, com coração acima de tudo e sem medo.
O meu primeiro relacionamento marcante com alguém do sexo oposto deu-se precisamente nessa idade, na pré-adolescência se é que lhe posso chamar assim. Recordo com muita clareza as minhas barreiras naturais que outra pessoa poderá chamar de resistências mas que eu continuarei a chamar de barreiras naturais, porque hoje, mais consciente, percebo que a minha menina era muito mais sábia do que eu pensava. Recordo por exemplo a minha relutância/vergonha de usar uma aliança de compromisso, sentia-me estranha e até ridícula, cheguei mesmo a usá-la só quando estava com essa pessoa e todo o tempo que não estávamos juntos eu tirava-a. Conscientemente eu sabia que não tinha idade para aquilo e inconscientemente eu sabia que aquilo era uma coleira, uma forma de me ter marcada, a galinha com a anilha. Passado algum tempo porém ignorei toda esta intuição e o que a princípio me parecia estranho acabou por se entranhar de tal forma que mesmo depois deste relacionamento ter terminado e tudo o que com isso veio, eu insistia em usar a dita aliança de comprometida. A formatação foi pois bastante completa e bem feita, com a minha autorização e consentimento. Recordo também "pequenas" manipulações que me faziam sentir mal por ser livre, mal por querer estar com a minha família, mal por chegar atrasada, mal por falar com um amigo que é apenas e só isso. Um dos episódios que mais me marcou foi de um dia em que tive um "furo" na escola e toda a minha turma se juntou para conversar durante essa hora, quando a campainha tocou eu enchi-me de terror porque eu estava a conversar com um rapaz de quem esta pessoa tinha muitos ciúmes. A minha primeira reacção foi de cortar a conversa e ir para outro sítio. Tinha medo. Mas depois resisti e pensei que não havia mal nenhum, porque realmente não havia, e continuei a conversa que estava a ter. Infelizmente a reacção do meu namorado da altura foi chegar por trás do meu amigo e bater-lhe sem sequer lhe dizer uma palavra. Fui para casa nesse dia, não conseguia encarar ninguém da minha turma e apesar deste sinal claro e inequívoco eu decidi continuar.
Isto tudo para vos dizer que não, não é amor, tudo aquilo que nos ensinaram, tudo aquilo que nos foi passado. Não é amor a manipulação que nos impede de sermos nós mesmas. Não é amor dizerem-nos que nos escondem algo para sermos poupadas. Não é amor criticarem a roupa que usamos. Não é amor aquele aperto no braço e a pergunta que se lhe segue "onde vais assim vestida?". Não é amor o fazerem-nos sentir como propriedade. Não é amor fazerem-nos mal e depois dizerem que é amor. Não, não é amor! É tudo um jogo de poder! É tudo uma questão de insegurança mascarada de força. Minhas queridas, não é amor! E enquanto contarem essa preciosa mentira a vocês mesmas o ciclo vai seguir e perdurar e o que ao princípio era estranho depois entranha-se e vocês pensam que é assim mesmo, mas não é. A possessividade, a agressividade, seja ela verbal ou física, o rebaixar, tudo isso, não é amor e não é culpa vossa.
E hoje temo que exista uma violência bem mais perigosa que infelizmente não deixa nódoas negras, uma violência que não dá para apontar o sítio onde magoa mas que talvez deixe mais marcas que uma perna partida. As palavras tornaram-se o palco desta violência, são dissimuladas, disfarçadas de desculpas e doçuras, mas não se iludam, elas não deixam de ser o que são, violências contra quem vocês são, pequenas espadas apontadas à vossa força e à vossa resistência que aos poucos vocês vão deixando de lado e cedendo às investidas perniciosas de quem vos diz amar. E um dia acordam, vão ao espelho e a pessoa que lá está não são vocês mas uma sombra apenas, completamente sugada e quase sem vida e por trás surge alguém a dizer "Amo-te"... mas não é amor... é falta dele, por ti mesma(o).

6 de maio de 2016

Bosque de Boulogne

5 de Maio é feriado em Paris, festeja-se o dia da Ascenção e como o Sol decidiu agraciar-nos com a sua presença decidimos partir à exploração de mais um bocadinho da cidade. Desta vez escolhemos o Bosque de Boulogne e assim ainda podíamos "piquenicar", porque não? Uma das coisas que mais me surpreendeu quando aqui cheguei foi a forma como os parisienses de gema ou não, aproveitam os espaços verdes que têm à disposição. Nós, os portugueses do litoral pelo menos, temos a praia, usufruímos dela o mais que podemos, mas os parques, os espaços verdes, acabam por ser deixados para os velhotes jogarem cartas ou ficarem ao abandono e se alguém pensar em ir comer ou apanhar Sol na relva é parolo com toda a certeza. Pois aqui é precisamente o contrário, os espaços verdes são um luxo e são usados e abusados em cada bocadinho livre que estas pessoas tenham, seja para comer um sanduíche na hora de almoço, seja para apanhar Sol em biquini ou mesmo cuecas e soutien. Estão a imaginar isto no Jardim d'Arca d'Água? Na Cordoaria? AHAHAHAHAHA certo...

O bosque de Boulogne é gigantesco! 846ha que eu espero conquistar por partes, desta vez ficamos pelos lagos, são dois, o inferior e o superior, no inferior tem ainda uma pequena ilha que é apenas acessível por barco. A travessia de barco foi bastante interessante uma vez que quando entrei no barco eles decidiram que não ia entrar mais ninguém então fui sozinha o que se traduziu em cerca de 30 minutos de espera que eu optimizei a arranjar um esquema para não pagarmos os bilhetes do barco, sou portuguesa, está-me no sangue.

Quando chegamos à ilha trocam-se as toalhas de piquenique e as sandochas da outra margem pelo baton vermelho, os saltos altos, os sapatos de vela e a calças com a dobrinha, eu nem sei como é que eles chegaram ali, mar táxi (quem não sabe o que é um mar táxi?)?

Depois de dar 5€ por uma água com gás num copo de plástico decidimos dar por encerrada a aventura para grande pena minha, não consegui explorar a ilha e uma casinha toda catita que tinha por lá. Da próxima vez!

Métro:
  • Linha 10 - estação Porte d'Auteuil
O hipódromo fica situado no bosque de Boulogne e nos dias em que não há corridas pode ser visitado e fica a caminho dos lagos. Ah!!! Gratuito!!! 

Hipódromo

Lago Superior

Lago Superior

Lago Inferior

Ilha

Lago Superior



2 de abril de 2016

A Sombra


Sónia Gonçalves - Heartling



Hoje sem muitas palavras. Hoje sem grandes pensamentos. Muitos sentires. Tantos... tantos...

23 de março de 2016

Intenção

Que eu adormeça com intenção,
Que eu sonhe com intenção,
Que eu acorde com intenção,
Que eu me lave com intenção,
Que eu me penteie com intenção,
Que eu me seque com intenção,
Que eu prepare as minhas refeições com intenção,
Que eu mate a minha fome com intenção,
Que eu mate a minha sede com intenção,
Que eu respire com intenção,
Que eu fale com intenção,
Que eu escreva com intenção,
Que eu pinte com intenção,
Que eu veja com intenção,
Que eu ame com intenção,
Que eu chore com intenção,
Que eu sofra com intenção,
Que eu peça ajuda com intenção,
Que eu concretize com intenção,
Que eu cure com intenção,
Que eu viva com intenção,
Com intenção eu nasci,
Com intenção que eu parta,
Porque é na intenção que eu e a Mãe nos encontramos e damos as mãos.

Artista Igor Zenin - Encontrada no blog https://laurenelegrange.wordpress.com



16 de março de 2016

Carta que escrevi para ti a pensar em mim

O vento trouxe-me sussurros de um tempo em que te conheci. E como é que se diz a essência de algo que não recordas? Não dizes, sentes, mas gostavas de dizer mesmo assim. E na busca de palavras fechei os olhos e procurei em mim todas as que me pudessem chamar à memória algo que eu vivi mas não recordo. Nada surgiu, apenas lágrimas. E eu aceitei-as e deixei-as correr livres pelo meu rosto seco, tão seco, eu já não sabia como ele havia secado. Fiquei assim sem saber o que é o tempo e como ele se move. Parei. Creio até ter parado o próprio tempo porque a minha vontade é grande e tem o poder de parar o tempo quando eu quero. Hoje eu quis. Precisei deste intervalo, então parou-se o tempo e eu pude sentir. E eu senti o sopro de vida em mim, o sopro de mim em mim. Eu senti a música desenhar-se no meu corpo e as imagens que ela traduz na minha cabeça. Eu senti a luz surgir e bater num lugar cheio de bafio. E eu percebi, tu és eu, eu sou tu. E as lágrimas cessaram.


14 de março de 2016

Sussurros de mim para mim

Não sei em que momento saí de mim para passar a ser outra que não sou. Ficou tudo confuso pelo caminho e as memórias até atrapalham.
Será que segui pela direita em vez de virar à esquerda? Quem sabe... talvez até tenha sido algum brincalhão que mudou a placa de sítio. Havia alguma placa? Ninguém me responde ou serei eu que não ouço quando me falas? Talvez, talvez até seja eu que me fale e não me oiça.
No parque cheguei a pedir indicações mas quem me falou parecia tão ou mais perdido do que eu. E esta multidão? Arre calem-se!!!

9 de março de 2016

Carta aos meus filhos

Hoje pensei em vocês como já não fazia há muito tempo. Pensei em vocês porque hoje aprendi uma coisa muito importante e fiquei com medo de a esquecer antes de vocês "existirem", então vou escrever para não esquecer e mesmo que esqueça depois de o escrever esta carta vai fazer com que me lembre e eu não tenha escapatória possível.
Hoje aprendi que o amor a nós é muito importante, mais importante do que qualquer outro amor que vocês possam ter nas vossas vidas e sobretudo mais importante que o amor que aparece nos contos de fadas. Meus queridos, espero ter a força e a presença de espírito para vos explicar que vocês não têm de ser o "príncipe no cavalo branco" ou a "donzela presa na torre" de ninguém!!! Esta é a maior mentira de todos os tempos!!! E eu não me posso esquecer de vos dizer isto!!! É muito importante!!!

Quero dizer-vos que mesmo o amor que vocês têm a mim e ao vosso pai não pode nem deve ser maior que o amor que vocês devem a si mesmos e que se algum dia eu vos fizer sentir o contrário peço-vos, zanguem-se comigo e chamem-me mentirosa e mostrem-me esta carta e eu dou-vos a minha palavra que vou acordar do meu umbigo. Quero explicar-vos também que a mim vocês não devem nada da mesma forma que eu não devo a vocês, nada para além de vos preparar para o mundo, para a vida e para vocês mesmos mas a partir daí é por vossa conta e eu por minha. Isto não quer dizer que vou deixar de vos amar ou que vos vou abandonar ou deixar de me importar convosco, é precisamente o contrário é preciso muito amor para deixar alguém viver a sua própria vida, espero que as nossas conversas sejam eternas e enriquecedoras mas o meu papel é mostrar-vos como serem pais e mães de si mesmos e vai ser muito díficil para mim porque eu sou uma protectora natural, mas vou dar o meu melhor.

Existe outra coisa muito importante, vocês vão criar expectativas em relação a mim, esqueçam-nas, eu não sou nada do que vocês possam imaginar, nem sou perfeita como eu sei que vocês vão pensar e  para vos ajudar a matar todas essas expectativas eu vou falar-vos de mim, vou contar-vos os meus feitos e os meus desfeitos, vou contar-vos as minhas cores para que percebam que tal como vocês eu sou apenas e tão só humana, nada mais, cheia de falhas e qualidades, na busca de mim mesma, talvez vocês também queiram buscar-se a si mesmos, não se preocupem eu também vou matar todas as minhas expectativas em relação a vocês, vai ser díficil porque eu já as tenho, mas vou dar o meu melhor e se eu falhar ou vocês falharem, não faz mal, estamos aqui na mesma para avançarmos mais um bocadinho. Vou mostrar-vos todas as chagas que eu decidi transformar em canteiros de flores, flores essas que talvez possamos colher juntos e também aquelas às quais eu teimo agarrar-me porque tenho pena de mim mesma. Quero explicar-vos que a dor não é nem má nem boa, apenas é e o que acontece a seguir depende do que nós fazemos com ela, ou continuamos a alimentar a chaga ou regamos para ver que flor vai saír dali. E está tudo bem na mesma. Não faz mal chorar, não faz mal falar do que sentimos, não faz mal sentir o que sentimos e depois desta aceitação vamos ver o que podemos fazer com isso tudo.

O melhor ensinamento que um dia eu vos poderei transmitir é mostrar-vos que me amo mais a mim do que a vocês e espero que vocês se amem mais a vocês do que a mim.

4 de março de 2016

Viver ou "viver"

Há muito, muito tempo, antes das histórias falarem de homens e mulheres as pessoas viviam. Não existiam livros, não existiam manuais e as pessoas viviam. E tudo o que hoje temos ao nosso dispor é fruto de pessoas, de seres humanos que Viviam. Para viver eles não precisavam de "instruções", apenas deles mesmos. Eu sei, de certa forma a vida deles era mais fácil do que a nossa, a tua, não existiam pressões, influências, não como conhecemos hoje, ou desconhecemos. O homem e a mulher recebiam orientações mas do interior. As receitas surgiam do interior. As poções surgiam do interior. A vida surgia do interior. Algures no caminho começamos a "viver", a "viver" e a receber instruções do exterior. E as receitas que fazemos já não são as nossas, bem como as histórias que contamos e ouvimos, são tudo menos nossas e assim prosseguimos a "viver" pensando que estamos a viver. Enganam-se, não estamos. Nada é nosso, nada é verdadeiro até que saia de nós mesmos e nesse momento o bolo que tu cozinhares é o bolo de que realmente precisas.



18 de fevereiro de 2016

Eu não sou feminista,Eu Sou Mulher

Em menina havia coisas que me incomodavam profundamente, coisas que na altura eu não sabia a que categoria de acontecimentos pertenciam mas que me incomodavam. Incomodavam-me ao ponto de beirar a revolta e recordo que uma das etiquetas que foi atribuída em criança foi a de "respondona". Ao crescer fui sentindo muitas outras coisas que me incomodavam e me revoltavam, outras etiquetas foram surgindo, pessoas foram se afastando de mim, outras foram chegando. Qualquer uma dessas etiquetas remetia sempre para o facto de eu ou não estar satisfeita com alguma coisa ou simplesmente por pensar de maneira diferente do que seria esperado de uma mulher. Fui tendo pequenos sinais a respeito disto, fosse pela minha forma de vestir, fosse pela minha forma de estar e sorrir, fosse simplesmente pelas coisas que eu partilhava com toda a naturalidade. Os rótulos foram se sucendendo, um atrás do outro. Confesso que momentos houve em que eu mesma fiquei confusa, muito confusa com a minha própria identidade e com a autenticidade dos rótulos que me eram atribuídos. Tive momentos que chorei as injustiças e tive momentos que me chorei com pena de mim mesma por ser todos aqueles rótulos que todas aquelas pessoas me deram, afinal, só podia ser verdade não é?

Hoje eu sei que não é assim e sei que todos os que me deram rótulos estavam errados e que no fundo bem no fundo eles não sabem quem são e muito menos o que eu Sou e Quem eu Sou e que todos aqueles rótulos provinham e provêem de algo que lhes foi ensinado e transmitido, de algo com que também eles e elas cresceram portanto é normal que não soubessem fazer melhor, para quê questionar? Para quê pensar de outra forma senão existe outra forma?

Por isso hoje me sento aqui em frente do meu computador perfeitamente confortável quando vos digo, eu não sou feminista, eu Sou Mulher e percebo também que o que eu sou, Mulher, foi a razão de todas as vezes em que eu me sentia incomodada com todos os rótulos e com os olhares de esguelha. É por ser Mulher que me sinto incomodada quando ouço "mulheres" fazerem comentários sobre outras mulheres que nunca saíriam da boca de uma Mulher, "mulheres" que foram ensinadas a dizer coisas que um "homem" diz, "mulheres" a quem lhes foi dado quando nasceram um pénis invisível e que pesa mais do que o útero que carregam. Eu incomodava-me e sentia-me estranha porque eu Sou uma Mulher que gosta de Mulheres e que fica triste quando "mulheres" se tratam como homens e se julgam como homens.

Por isso não, eu não sou feminista e o simples facto de existir a necessidade desta nomenclatura é um sinal inequívoco de que algo está mal, algo está profundamente mal e podre dentro de nós e a nossa sociedade é apenas e somente um reflexo disso mesmo. Eu Sou Mulher e assumo-me como tal e com tudo aquilo a que tenho direito e com todos os meus deveres também e o ser Mulher vai muito além da igualdade de salários, e posições numa empresa, isto é tão e somente apenas um pequeno reflexo de algo muito maior e bem mais problemático. É tão mais profundo do que isto. E eu desejo do fundo do meu coração que todas as mulheres comecem a sentir em si esta verdade e se assumam como aquilo que são, Mulheres.

Imagem: Nicholas Roerich